“Eu quero sair!”. A garotinha gritaria assim por horas, e então, por dias... Era como se seus gritos desesperados pudessem leva-la pra fora naqueles momentos em que ela mais precisava manter-se dentro.
Sua esquizofrenia costumava assustá-la, mas já não era mais assim. Seus delírios, suas visões, tudo aquilo começava a maravilhá-la. Enxergar um mundo totalmente diferente, novo – totalmente pessoal – parecia incrível. “E o melhor de tudo”, ela dizia às paredes, entre dentes sorridentes, “é que eu não sou capaz de distinguir o real e o imaginário.”.
Ela havia passado a maior parte da vida naquele manicômio. A família, muita conservadora, abstinha-se do dever de cria-la. “Talvez, se seus sintomas fossem positivos... Mas, esquizofrenia residual? Perdoe-me, Doutor, mas nossa família já possui prioridades demais”. E assim ela lá foi jogada, no Manicômio Applefield, apenas para crianças abandonadas.
Quando conseguia vencer as enfermeiras pelo cansaço, era então levada para a campina que não muito se estendia, acabando em uma floresta densa e verdemente viva. Vez ou outra guardava nos bolsos do vestido de cetim preto alguns grãos que encontrava no chão próximo à cozinha, e então se sentava à sombra de uma árvore e, grãos nas mãos, esperava a chegada de seus grandes amigos, os corvos.
Eles chegavam primeiramente de forma discreta, mas logo vinham tantos que às vezes até o Sol parecia sumir. Comiam das mãos da menina, batiam suas asas próximas à pele dela e, quando iam embora, deixavam um enorme rastro de penas negras e brilhantes. Ela então as guardava no bolso onde outrora escondera os petiscos daquelas aves, e às vezes enrolava umas numa mecha de cabelo, achando graça da forma como penas e cabelo pareciam uma coisa só, naquela cabeça cor de noite.
Pra ninguém contava os segredos de sua amizade. Fugia de todos que se aproximavam, achando que a indagariam acerca de seus pássaros. Assim que o último deles sumia no céu, corria para seu quarto, não dando tempo nem às enfermeiras de a perceberem, refugiando-se daquele mundo colorido.
E assim seguiam os dias. Ela acordava, chorava, ia para fora, voltava fugida, olhava catatonicamente para as janelas de vidro emolduradas por cortinas cheias de maçãs, jantava, e então dormia, ansiosamente, só esperando tudo começar outra vez. Pouco aproveitava de lâmpadas ou velas. A luz do Sol a atraía pela impossibilidade de ser apagada, apenas.
Um dia, enquanto alimentava seus pássaros, ouviu que por detrás da árvore alguém lhe chamava. “Lena... Lena...”. Virou-se antes que pudesse perceber a voz, e viu o mais magnífico corvo de sua vida. Ele era grande, grande como uma casa, e parecia abraçar o mundo com suas espetaculares e negras asas. Seu bico comprido abria-se e fechava-se, e continuava a falar. “Lena... Venha... Lena... Venha...”, ele a chamava, em direção à floresta de frente ao manicômio. Seus olhos fechavam-se e abriam-se em deleite, enquanto ela caminhava, guiada pelo próprio êxtase. Nem foi capaz de escutar as enfermeiras desesperadas, “Helena, volte! Helena, a rua!”.
Quando ela sentia-se entrando na floresta, o corvo gralhou horrível e agudamente. Começou a partir-se em linhas vermelhas, até desaparecer em uma explosão de fumaça densa e negra, fazendo-a acordar. Um caminhão buzinava freneticamente, e antes mesmo que ela tivesse chance de agir, foi atingida em cheio.