24 de julho de 2017

O Jesus que você inventou

    Vamos começar essa reflexão entendendo que existe uma distância entre quem as pessoas realmente são, e a ideia que nós temos delas. Nós somos virtualmente incapazes de conhecer e compreender plenamente a complexidade de sentimentos e pensamentos que os outros são, porque sempre olhamos pra eles a partir da nossa própria complexidade de sentimentos e experiências. O Único capaz de te conhecer plenamente é aquEle que criou e não apenas viu, como viveu com você, todas as experiências da sua vida.
   
    A afirmação é válida inclusive pro maior de todos os homens, Jesus, o Cristo, aquEle que dividiu a história entre antes e depois de Seu nascimento. Nossos olhos não viram seu rosto, nem nossos ouvidos ouviram Suas palavras, ou nossas mãos apalparam Suas mãos, mas Ele continua aí, sendo maioria absoluta na face da Terra.
   
    Aliás, em um mundo religiosamente complicado, muita gente foge dos rótulos dizendo que só tenta viver sendo como Jesus. E, não me levem a mal, eu mesma solto essa de vez em quando. Mas a geração do "O que Jesus faria?" se acidentou em algum momento, porque se esqueceu que Jesus é vivo, e Ele não faria - Ele faz, e está fazendo. E Ele sempre disse que apenas fazia o que via o Pai fazendo, então fica bem estabelecido um padrão - fazer o que o Pai está fazendo. Então, a lógica me manda imitar não apenas a superfície das atitudes de Jesus, mas a origem de todas elas, porque elas seguiam um princípio do qual eu não posso fugir, se realmente decidi devotar minha vida a ser como Ele.
   
    [Se você não acredita em nada do que eu falei até o momento, imagino que possa pelo menos concordar que Jesus foi um cara muito importante e digno de imitação. Aguenta firme aí.]
   
    E aquilo que nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nos é revelado pelo Único que está conosco até hoje, e que conhece as mais profundas profundezas de Deus. O Espírito Santo vive em nós, e não há desculpa que nos isente da responsabilidade de cumprir a vontade de Deus, a única que Jesus aceitou sobre Sua vida. Assim como Ele não veio pra fazer o bem, mas para cumprir Seu papel no bom propósito do Pai, estabelecido nEle mesmo, eu e você também não viemos para andar pela terra como seres de luz cheios de frases de efeito. Viemos cumprir uma missão, estabelecida antes da fundação do mundo.
   
    O problema é que a figura de um homem bom, cuja vida terminou em sacrifício, é muito conveniente pra sociedade dos cidadãos de bem. É lindo que eu fale que quero ser uma pessoa iluminada e cheia de amor. Mas, se sou eu quem decido o que é luz e o que é amor, isso é apenas um alívio de consciência e um disfarce pro meu egoísmo. A Vida não é, nunca foi, e nunca será, o que nós queremos que ela seja. Ela é muito grande, muito maior que nós, pra que possamos segurá-la com nossas próprias mãos humanas, e achar que nossa individualidade tem o direito e o poder de fazer com que o Universo gire em torno da nossa lista pessoal de achismos.
   
    O homem bom favorito da sociedade ocidental não era nada como essa sociedade tentou pintá-Lo. Mudaram não só Sua aparência, mas suavizaram Suas palavras e o transformaram num retrato genérico de tudo aquilo que nós queremos que seja bom, puro e agradável. Um ser "de luz", que "fazia o bem" e deixou o Amor como mandamento. Aliás, "Jesus é Amor!", eles gritam - mas amor não é Jesus.
   
    Jesus não foi uma pessoa boa. Jesus trouxe uma espada, porque Ele é a Verdade, e a Verdade não é negociável - ela é ou não é. Jesus trouxe justiça, Jesus proferiu exortações, deixou instruções precisas sobre como se deve viver a vida, e não pílulas genéricas para ser feliz. Até porque pessoa boas não transformam a sociedade! Atitudes generosas esvaziadas de propósito não transformam a sociedade. A humanidade tá aí há séculos tentando provar que consegue usar a gentileza pra mudar a natureza decaída do homem. É necessário algo maior. Um mundo inteiro afundado em corrupções precisa de uma grande estratégia, precisa de visão além do alcance, precisa de um exército bem treinado e um General apto a discernir as intenções e as atitudes dos corações, para que a essência do convencimento do mal possa alcançar tantos quanto seja possível. Te parece exagerado? Pois era assim que Jesus vivia.
   
    E não me entendam mal, Ele era bom, muito bom. O Único genuinamente Bom. As Suas palavras duras eram boas, Seus milagres eram bons, Seus mandamentos eram bons. Ele se preocupava com os pobres, com os fracos, oprimidos, doentes. Ele entregou tudo de Si. Mas em obediência ao Pai, dentro de um projeto, de um propósito, tudo por Amor. O verdadeiro Amor, muito além do que nossa mente humana consegue aceitar; que não é egoísta, que não busca os próprios interesses, nem a própria vontade. Amor à Vida e ao que é Eterno, em seu sentido mais puro e pleno - conhecer e prosseguir em conhecer o Único que vive eternamente. Ele abriu um Caminho para ser trilhado; não inaugurou um estilo de vida, mas um Reino.
   
    Jesus não é um medicamento genérico que cura todas as suas dores, Ele é uma injeção precisa que te mata, depois te ressuscita. Ele não é uma lâmpada que você encaixa em qualquer lanterninha, Ele é a própria Luz. Se só te interessa iluminar alguns, a história está cheia de homens e mulheres de bem. Se te interessa buscar e encontrar a Salvação, a boa notícia é que Ele é o Salvador do Mundo. Mas Ele também é Senhor. Não tente fazer dEle seu servo, não tente inventar a sua versão daquEle que criou todas as coisas. Ele é o Rei desse Reino, o ponto de convergência de todo esse bom propósito, o dono do Poder. Ele é. Eu e você, não.
    
    

3 de julho de 2017

O que eu vi dos assentos baratos

     Nós não tínhamos dinheiro pros assentos mais caros da casa. Mas faz parte. O salão não é feito só da primeira fila, nem da segunda, nem da terceira. Nem da vigésima. Nem da quinquagésima-terceira, onde nos instalamos. Sentamos os dois em bancos de fundo, de canto, perto do papel de parede rasgado e dos braços de poltrona quebrados, onde casais se amavam e se amassavam (nós, não).
     
     Não dava pra dizer se os atores tinham nariz grande ou queixo quadrado, nem de óculos. O som das suas vozes ecoava agradavelmente por todos os lados, mas os sons do fundo se misturavam. Perto da rua, eu conseguia ouvir o ir e vir de carros, me lembrando que a vida não parava. Ouvia ao longe as vozes de fora, e os sussurros das vozes de perto, com tédio demais, ou empolgadas demais. Quem havia estado ali uma dezena de vezes recitava as falas sem soltar grandes sons, mas, dos assentos baratos, eu via o vulto de seus lábios se movendo.
     
     Vimos duas baratinhas que se moviam incessantemente pelo teto, tão perto de nós, e cruzavam com uma fila de formigas pretas. Tinha chiclete no cabelo de alguém cinco fileiras depois de nós. Som de gente passando com pipoca. Um lanterninha passou metade do tempo parado no nosso campo de visão, cobrindo metade da cena. Brincamos de adivinhar o que acontecia atrás. Ele estava muito longe para que pedíssemos licença.
     
     Alguém quase na frente filmava tudo discretamente, escondendo a câmera no ombro dos outros. A menina ao nosso lado atendeu o telefone cerca de cinco vezes antes do primeiro intervalo. Outro lanterninha, parado atrás de nós, fungava a cada dois minutos, espirrava a cada quatro. As duas baratinhas viraram três, depois quatro, depois três novamente. A distorção de escala era tanta que eram quase maiores que as atrizes no palco. E elas se misturavam com as cenas numa tragédia kafkiana, e que só existia no nosso ponto de vista. Uma história feita nos assentos mais baratos da casa.
     
     As luzes se acenderam. Quem sentou na frente assistiu com detalhes a peça inteira. Nós assistimos tudo e todos. Valeu cada um dos dois mil centavos.