À distração que primeiro enfraqueceu nosso ritmo
insano de trabalho dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.
Eu me recordo de um belo tempo em que minha
existência era carregada de sentido – bons tempos em que havia um corpo onde
estar. Enquanto um ser abstrato, careço de seres tão-ditos-concretos que me
possam alojar no coração, nos músculos, na fé. Vejam bem, senhoras e senhores,
que não há existência tão miserável ou desencorajadora quanto a da Vontade de
Produzir.
Minha grande inimiga, a Procrastinação, ainda que de
vida tão abstrata quanto a minha, e tão carente de concreto para que exista
quanto eu, sofreu bem menos afrontas à sua sanidade, e permanece viva. Se
rejeitada por um corpo, corre e logo encontra um novo hospedeiro – não cria
laços. Eu, lamentavelmente, torno-me exclusivo do ser em que me escondo pela
primeira vez. Não sou apenas uma Vontade de Produzir. Sou Sua Vontade de
Produzir. Vontade esta que você tão cruelmente mata todos os dias ao passar de
um besouro colorido. Quando morro, não revivo, ou retorno; sou jogado ao
esquecimento, e logo, você, já assassino, trai minha lembrança, e nem mesmo
acende uma vela em honra de minha dura convivência dentro de sua alma
conflitante. Enquanto sou enterrado pelo Tempo, você trata de arranjar para si
uma nova Vontade de Produzir para chamar de sua.
A existência desta Sua Vontade de Produzir que lhe
fala durou quase uma manhã inteira. Tudo parecia bem quando você, depois de um
curto cochilo, decidiu levantar-se e trabalhar. Arrumou-se rapidamente,
ajeitou-se com ânimo na mesa de altura ideal que encontramos convenientemente
pelo caminho. Você mal havia notado, mas já estávamos trabalhando juntos desde
o momento em que saiu da cama tão decididamente. Parecia um sonho, um dia
perfeito. Assisti, através de seus olhos, conforme sua planta, em escala tão
maior que sua paciência permitiria, tomava forma.
Eu e Sua Criatividade (já bastante debilitada e
envelhecida, perto da morte) unimos forças conforme maquinávamos soluções e
novas ideias cromáticas, que lhe deixavam cada vez mais animada com o processo.
Pessoas passaram e lhe cumprimentaram – tamanha sua concentração e empenho, mal
foram notadas. Havia um futuro brilhante pela frente. Eu conseguia conceber
momentos de descanso e ócio saudáveis, que apenas me alimentariam e fariam mais
forte. E você, como uma assassina cruel e preguiçosa, colocou um fim em tudo. Acertou-me
primeiro conforme conversava com amigas cujos assuntos satisfaziam o lado
sombrio de sua bem-disposta essência.
Veio então, a hora do almoço. E, com o almoço, ligou
este computador (que, agora, como vingança, utilizo para trazer a público estas
memórias póstumas de uma existência curta demais para que seja espontaneamente
lembrada). Foi um tiro certeiro em meu coração abstrato. Faleci lentamente, e
seu egoísmo sequer permitiu-se notar. Era o fim de minha vida como Sua Vontade
de Produzir.
Morta como estou, não ressuscito como uma Nova Vontade
de Produzir. Não se turbe seu coração agora, porém, já que sabes de toda a
verdade – quem sabe, em alguns dias, não consiga um passe para que retorne como
Procrastinação e lhe assombre.
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