Telefone toca no meio da madrugada. O primeiro pensamento:
alguém morreu.
“Alô”
“Boa noite, senhor. Por gentileza, gostaria de falar com o senhor Leandro.”
“É ele quem está falando.”
“Ah sim. Boa noite, senhor Leandro. Eu falo em nome do seu
banco, gostaríamos de comunicar-lhe um débito atrasado em seu nome.”
Pausa
“Como é? Você me liga à quinze pra uma da manhã, na terça
feira, pra me falar de débitos atrasados no meu nome? Por favor, moça, me faça
uma gentileza, vá dormir. Vá pra sua família, pro seu marido, pra sua namorada,
quem seja que vive com você. Retornem a ligação amanhã.”
“Não senhor, por favor, não desligue.”
“Felizmente, não há nada que me impeça de fazer isso. Boa
noite.”
“Por favor, senhor.”
“O que exatamente me daria razão pra isso? Faça-me um favor,
querida. Siga meu conselho e saia dessa vida de telefonista da madrugada. Boa
noite.”
“Moço, por favor, não desligue!”
“Olha, se esse for algum desses trotes em que você vai dizer
que foi sequestrada e precisa que eu deposite dez mil reais em uma conta bancária
senão você morre, sinto muito, ligou pra casa do idiota errado. Boa noite,
senhorita.”
“Eu te imploro, não desligue, por favor.”
“Dê um bom motivo pra não ter feito isso ainda, e continuar
te escutando”.
“...”
“Isso é um não. Passar bem, moça. Boa noite, mais uma vez.”
“Você acha que a vida faz sentido?”
“Olha, moça, se você ficou presa no bloco da Filosofia ou
coisa parecida, não me interessa. Isso não é motivo pra eu continuar perdendo
tempo de sono. Boa noite.”
“Então a vida não faz sentido pra você”
“Quem disse isso? Eu não disse se achava ou não que a vida
fazia sentido”
“Eu te fiz uma pergunta e o senhor respondeu reclamando
sobre não dormir. Se isso é tudo de importante que o senhor enxerga em uma
madrugada como essa, sua vida não tem o menor sentido!”
“Olha, moça, se você está tentando me enrolar pra fazer
alguma cobrança indevida, rastrear os dados do meu cartão ou clonar meus
documentos, parabéns, já deve ter conseguido. Aguarde meu processo e deixe que
eu descanse enquanto as coisas não acontecem. Boa noite.”
“Do que você tem medo, senhor?”
“Eu? Medo? Porque eu teria medo, se você nem se lembrou de
bloquear o número do celular do qual você está ligando!”
“O senhor acha mesmo que isso é algum tipo de piada?”
“Mas não é, minha querida?”
“Você deve ser algum homem de negócios, que não gasta tempo
com pessoas que pareçam menos importantes a você.”
“Sou sim, um homem de negócios. Um homem de negócios com o
sono! Cansei dessa narrativa epifânica. Boa noite.”
“Se te afeta, deve ser verdade!”
“Minha querida, eu já passei da idade de ser afetado por
esse tipo de coisa. Precisa muito mais pra me alcançar. Sua insistência, por
exemplo, faz cócegas ao meu sono, nada mais. Como meu sono é muito importante
neste momento, eu devo insistir que você o deixe em paz. Mas, depois de um bom
tempo de descanso, ele com certeza irá pra segundo plano e você poderá falar
com ele quando e o quanto quiser. Por ora, boa noite. Cansei desse joguinho.”
“NÃO DESLIGUE, POR FAVOR!”
Pausa.
“Moça, acho que já está bem claro que isso não é uma
operação de telemarketing feita fora de hora. O que exatamente está acontecendo?”
Silêncio.
“Se não há nada mais a ser dito, boa noite. Pela milésima
vez.”
Apesar disso, o
telefone continuava ligado. Mais silêncio.
“Me perdoe o incômodo, moço, de verdade. Eu só queria alguém
pra conversar. Encontrei seu cartão na rua, há uma semana, e desde então tenho
vontade de te ligar. Finalmente criei coragem, hoje. É tarde, mas eu sabia que
se não fizesse agora, acabaria desistindo depois.”
Silêncio.
“Me perdoe mesmo. Mas é que eu estava me sentindo muito
solitária, sabe. Eu sempre fui uma pessoa solitária, mas chegou um momento em
que o silêncio começou a falar alto demais pra que eu conseguisse aguentar.”
“Onde você encontrou meu cartão?”
“Estava perto de um banco, na Praça Central. Costumo me
sentar por lá no meu horário de almoço. Tão solitário, jogado.”
Ele ri.
“O que eu disse de engraçado?”
“Sabe, aquele cartão foi parar no chão depois de uma
discussão com minha ex-mulher. Não nos víamos há alguns anos. Abordei-a naquele
banco. Como de costume, tudo correu errado. Entreguei-lhe meu cartão, pedi que
me ligasse quando estivesse mais calma. Mas ela o jogou pro alto, e se afastou
xingando.”
Silêncio, silêncio.
“Eu só queria ter uma outra chance, pra fazer com que as
coisas funcionassem. Queria que fôssemos amigos, pelo menos. Isso é ridículo,
depois de tê-la traído tantas vezes, e incrivelmente clichê, mas acabei
percebendo que ela era a única que eu queria.”
Pausa.
“E eu nem sei por que te contei isso.”
“Acho que você precisava desabafar.”
Pausa.
“Nós dois precisávamos, na verdade.”
Mais uma pausa.
“Bom, acho que agora vou te deixar dormir, senhor Leandro.
Boa noite. E obrigada.”
“Eu que agradeço. Você nem me disse seu nome.”
“Carolina.”
“Ah sim, bonito nome. Boa noite, Carolina. Muito obrigado.”
“Boa noite.”
O telefone permanecia
ligado.
“Sabe, será que eu poderia te ligar depois, em um horário
mais apropriado? Seu número vai ficar gravado no meu telefone, de qualquer
forma.”
Pausa.
“Por favor, sim.”
“Bem, isso é ótimo! Então, é isso, né. Boa noite.”
“Boa noite”.
Tutututututututu...
Luisa sua linda! que texto incrível , já li TODOS do blog ;D
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