30 de agosto de 2012

Madrugada(s)


     Acordamos, e inicia-se o dia, como sempre. E chega ao fim, mais uma vez. Manhã, tarde, noite, e é hora de ir dormir. Hora de deitar, descansar a cabeça pesada do estresse diário que a rotina nos causa. Deixar que nossa mente respire calmamente um ar puro de relaxar-se.
     
     Quem dera fosse fácil assim.
     
     Existem dias cansados que não se encerram ao deitar. Dias perturbados, psicologicamente balançados, que nos deixam pensando, pensando... 
     
     Coisas para fazer, preciso de coisas para fazer.
     
     Qualquer texto, desenho, vídeo, canção ou conversa que me distraia. Pelo celular, pelo computador, usando uma caneta ou um livro. Qualquer coisa. Qualquer coisa que mudasse meus pensamentos. Um bom amigo passando por problemas. Um jogo que pareça especialmente complicado. Algo que me dê sono, cansaço de pensar. Televisão sempre me faz dormir. Me dá sono, tantas banalidades, que abraço como se fossem as mais úteis dessa vida. Grande distração.
     
     Mas, uma hora, o programa tão bom acaba. Os amigos vão dormir. O livro chega ao fim. O desenho está completo. E o sono, o sono ainda não chegou. Ainda não quis chegar. O descanso foge de mim, em noites assim, como demônio foge da Cruz, sabendo que nela está o poder que o dissipa.
     
     Silêncio. Escuro. Solidão. Nenhum amigo com quem falar.
     
     Quem? Por quê? Como? Até quando?
     
     E minha mente se desfazia em perguntas.
     
     Eram sempre as mesmas perguntas, dentro dessa mesma mente. No mesmo quarto. À mesma hora. E por muitas e muitas madrugadas, consequências de dias semelhantemente cansativos. Desgastantes. Psicologicamente. 
     
     Ao contrário outras noites em claro, em que minhas filosofias acabam por me levar a alguma resposta, que me satisfazia para o sono, nessas não ocorria bem assim. Eram perguntas que ecoavam, e rebatiam nas paredes do quarto, voltando para mim. Algumas escapavam pelas janelas, e subiam até os céus. As respostas retornavam, mas eu não as conseguia escutar.
     
     E era isso.
     
     Ficava assim até que fosse tarde o suficiente da madrugada, e cedo do dia, para me levantar, e agir como se tudo houvesse ocorrido tão normalmente como deve ser. 
     
     Acordamos, e inicia-se o dia, como sempre. E chega ao fim, mais uma vez. Manhã, tarde, noite, e é hora de ir dormir. 
     
     Mais uma vez.

25 de agosto de 2012

Alegoria da Taverna - Capítulo II


[Para o capítulo anterior, clique aqui!]

- Não aguentei e voltei pra vocês! – Irrompi pela porta. 
     
Silêncio.
      
Por parte de todos.
     
Até de mim.
     
O lugar estava limpo. Limpo. Brilhando, parecia novo. Não fossem as caras familiares, diário, eu com certeza pensaria que havia entrado no lugar errado (apesar dos rostos lavados e dos cabelos desinfetados). Ana, Pedro, Marcelo, Johnny, Caio, Ariane, Guilherme, Gabriel, Matheus, João, Jaime... 
     
Foi então que eu tomei um grande susto. E entendi o que havia ocorrido.
      
Atrás do balcão, sujando de gordura as beiradas de um copo, estava Lord Taberneiro. Ou pelo menos o que eu julguei que fosse, porque nunca havia visto por aqui aquele oriental pálido e bem mais magro que o viking de 150 quilos que costumava ocupar aquele lugar.
      
- Passou um mago por aqui. – Minha voz desanimada só não estava pior que a expressão no rosto dos que confirmaram minha afirmação. Eu ainda me lembrava do que havia acontecido da última vez que um mago passara por ali (um dia te dou mais detalhes, diário, porque a história é beeem longa. E grudenta. E escorregadia.).
       
- Pior que isso, passou um mago esperto por aqui. Ao contrário da última vez. – Apesar da expressão de compaixão em seu rosto, era óbvio para todos que a maior vontade do Nasser era rir da situação inteira. – Ele farejou cada encantamento do local, e deu um jeito de danar com todos.
       
- Todos. – Eu não podia culpa-lo. Afinal de contas, devia ser bastante legal ter 2,5 metros de altura e barba ruiva. – Mas isso não tira o peso de você ter ido embora por seis semanas.
        
- Bom, sobre isso... – Coloquei as mãos na cabeça, pronta para responder, quando escutei uma voz imeditamente atrás de mim, provavelmente entrando pela porta que havia esquecido aberta.
               
- Nossa, mas está cada vez mais difícil encontrar suor frio desidratado por esse burgo, viu? Depois não querem que os magos entrem em grev... – Me virei, e acabei me deparando com uma figura estranhíssima, diário. Era baixinho, de bochechas e nariz vermelhos, e trajava uma veste comprida e brilhante, incrivelmente afetada. – Mas o que temos aqui, pra quê tanto silêncio? – Me encarou por um instante, olhando por cima dos óculos – E você, quem seria? Mais uma novata?
                 
- Sou novata coisa nenhuma, me respeite, Merlin do Paraguai. Só estava de férias. – Um segundo de arrependimento. Estava lidando com um mago esperto dessa vez. – Digo, acho que não nos conhecemos ainda.
                     
Todos ao meu redor seguravam a respiração. Alguns mais engraçadinhos já estavam fazendo sinais de morte e outras indelicadezas. Alguém me apontou a placa de boas-vindas da taverna, que havia sido reformada/limpa e atualizada: “número de membros mortos: 35”. Quando saí, eram 12 só.
                       
(E só uns 5 ou 6 eram culpa minha. Diretamente.)
                   
O silêncio constrangedor permanecia, e eu procurava uma máscara de Trooper onde pudesse enfiar a cara. O mago não fazia qualquer menção a falar ou se movimentar. Entrei em pânico.
                    
- Pois bem então, prazer querida. Sou Damian. E você, quem seria?
              
- Luisa, senhor. Prazer em conhece-lo. Estavam me contando coisas ótimas sobre o senhor. 
          
- Ah, claro que teriam coisas ótimas sobre mim! – Suspirou – Ouvi coisas sobre a senhorita  
       
- Ah. – Virei meus olhos em direção ao canto onde se amontoavam meus companheiros mais chegados. Uns desviaram o olhar. Desgraçados.
            
- De qualquer forma, sinto lhe informar que, por mais agradável que seja para mim sua companhia, você não pode mais entrar e-barra-ou permanecer nesta Taverna, pois agora está sob meu poder, literalmente, e não me sinto confortável com a presença de uma pessoa como você. Passar bem, queridinha.
                      
Arregalei os olhos. Sem ver, minhas mãos pegaram fogo.
                          
- THOR DO CÉU, que é isso menina? – O mago se arregaçou todo, e pulou no colo do bêbado mais próximo.
                          
- Desculpa, vossa Magia, me irritei um pouquinho – Caio e Gabriel sussurraram “Do mal!” ao longe. – Apesar de tudo, preciso lhe informar que não sairei daqui. Não mais.
                        
Sua sobrancelha esquerda se ergueu, e ele voou dos braços tremeliquentos que o seguravam. Parou em frente a mim e começou a crescer. E crescia, diário. Cresceu muito, e me olhava fundo nos olhos. Tremi as bases. Olhei pros lados, em busca de amigos, mas não achei nenhum. Nem o meu companheiro de garrafa. Traidores. 
                                 
Meus olhos incrivelmente arregalados não são nem passíveis de descrição. No entanto, após aquela demonstração de grandeza, voltou ao seu tamanho normal. Mas ainda me encarava friamente.
                         
- OK então, senhorita. Parece que entramos em um empecilho aqui. Porque, há cinco semanas atrás, isso aqui era só um lugar barulhento e fedorento, comandado por um taberneiro sob um encantamento mais fraco que guaraná Dolly. Eu renovei esse lugar. E decidi que não quero você aqui.
                           
- Opa, opa, opa. Isso não te dá o direito de mandar e desmandar aqui. A Irlanda do Noroeste é um país imaginário livre e reconhecido por todos os outros, e não estamos sob as leis dos magos. – Finalmente alguém havia sido homem o suficiente para enfrentar aquele baixinho xiliquento. E não, não foi um homem de verdade. Foi a Ana.
                         
- Ah, então temos duas mocinhas destemidas aqui? Ótimo! Se aparecer mais uma, a gente inventa um jogo! – Batia palmas e dava pulinhos.
                          
- Jogo? Que tipo de jogo? – Já éramos três na linha de frente. Ariane havia se juntado a nós. Aos poucos, alguns garotos davam alguns passos tímidos. Uns, mais ávidos, acabaram chegando mais rápido. A palavra “jogo” havia movimentado a taverna.
                                   
- Nossa, mas é só falar em jogo que to-do mundo resolve brincar? Mua-há-há-há! Devia ter pensado nisso antes! 
                        
A essa altura, diário, todos os bêbados e não-tão-bêbados haviam se aglomerado ao nosso redor. Eu quase podia sentir o cheiro de mofo que emanava dos nossos corações em sintonia. E sim, isso é tão meloso quanto... Mel. Mas foi bem isso que ocorreu.
                                 
- OK então, se é jogo que vocês querem, é jogo que vocês terão. – Uma nuvem de fumaça branca começou a emanar de seus olhos, e encheu a taverna. Ninguém conseguia enxergar qualquer coisa. Lord Komatsu gritou que fôssemos dando as mãos, e foi bem a tempo. Antes que conseguíssemos piscar, o chão sob nossos pés sumiu, e caímos livremente por uns 200 metros. Parecia que não pararíamos, até que uma Força muito densa nos segurou, boiando no ar. Estava tudo escuro, mas era possível ainda sentir a presença da fumaça.
                                
- Idoso, o quê que aconteceu? Luiç, é na sua cabeça que eu estou pisando? – Jaime falava com voz extremamente arrastada.                  
                         
Um burburinho se instaurou. Nossa situação não estava das melhores, e era culpa minha. Mais uma vez. Fiquei angustiada, diário, porque daquela vez as coisas podiam dar errado de verdade. Ia começar a chorar, mas minhas pretensões foram interrompidas por uma luz vermelha piscante, que iluminou o ambiente e nos fez perceber melhor o lugar em que estávamos. 
                          
- Isso é uma... Floresta? – Antes que pudesse me virar pra ver a quem pertencia a voz confusa, fomos todos silenciados por um som superior.
                               
- SILÊNCIO, FEDORENTOS DE ALMA. – Damian surgiu em meio à luz vermelha enevoada de branco, em sua forma gigantesca. Segurava um cogumelo vermelho meio comido nas mãos. – Se querem um jogo, terão um jogo. Mas é meu jogo, minhas regras. Se ganharem, podem voltar em paz pra sua taverna. E eu ficarei aqui no meu inferno colorido.
                          
- E se nós perdermos? – Lord Komatsu retomava o controle da situação.
                  
- Aí vocês morrem! Divertido, não?
                         
Cobri meu rosto com as mãos, fugindo dos olhares atravessados. Mas, mesmo boiando sobre uma floresta esquisita, senti algumas mãos e pés amigos tentando me consolar. Agora já não havia mais jeito.
                                 
- Bom, agora às regras do jogo. Olhem pra baixo e contemplem minha floresta. RÁPIDO TODOS! – Nos viramos como podíamos para obedecê-lo. – Ótimo. Então, vou dividi-los em grupos. Basicamente, o que devem fazer é atravessar a floresta, chegando vivos até o meu castelo – Ele apontava com o dedo branquelo um construção ao longe. Muito longe. – Serei um pouco justo e darei pra vocês mapa e mochila. Agora, não me responsabilizo por qualquer dano que a floresta possa lhes causar no meio do caminho.
                                 
- Como assim?? – Antes mesmo que ele pudesse responder, soltou uma risada maligna. A força que nos segurava se dissipou, e estávamos todos em queda novamente. Porém, estando prestes a alcançar o chão, um portal invisível nos engoliu. Reaparecemos em chão firme, e separados. Olhei ao meu redor: Ana, Willians, Nasser, Ariane, Johnny, Gabriel, Marcelo, Paulino e Lord Komatsu. Usávamos umas roupas feias, verde musgo, que quase nos misturavam à grama. Não sabíamos bem o que fazer.
                            
- ANDEM, GENTINHA MEDIEVAL, NÃO TENHO O DIA INTEIRO! – Podíamos ver mago Damian em meio às nuvens, sentado em um trono de ferro. – Se enrolarem assim, boto a Terra Média Aritmética inteira pra assisti-los, hein!
                         
Suspiramos profundamente. Concordamos em começar dando uma olhada no mapa, mas era tão difícil de compreender que deixamos a tarefa para os líderes do grupo – e da taverna. Uns trinta minutos após muito drama, obtiveram algum entendimento.
                         
- E então? Pra que lado vamos? – Ariane parecia ser a mais impaciente.
                        
- Bem, parece que temos que começar por ali – Nasser apontava para a direita. – Vamos, seus feios. – Invariavelmente, começamos a segui-lo. Ana, porém, havia ficado pra trás.
                         
- Que foi, Ana? Tá tudo bem? – Ela gesticulava de forma nervosa, e piscava incessantemente. Após algum esforço, no entanto, compreendi o que queria dizer.
                   
- Pessoal... Temos um problema. – O resto do grupo, ligeiramente à nossa frente, se virou.
                 
- O quê aconteceu?
             
- A Ana não consegue falar.


21 de agosto de 2012

Concórdia


- Mas você é uma criança, hein.
     
- Suspiro. Sou mesmo.
     
Sem reação por um segundo.
     
- Eu acabei de te chamar de “criança”, Pedro. Você está me escutando?
   
- Sim, e em altíssimo e boníssimo som, se você quer saber. Qual o problema?
    
- Não era um elogio.
  
- Eu sei disso. Mas é a verdade, não posso negar a verdade.
    
- Você sempre nega a verdade, Pedro. Você é um excelente negador de verdades. Precisava ser diferente justo agora? Agora?
     
- O quê foi, Ana? Estava querendo causar uma briga? Mais uma, é isso mesmo?
      
- Ah, pelo amor de Deus, você sabe que eu não preciso querer forçar uma discussão aqui nessa casa. Tudo é motivo pra rusgas debaixo desse teto.
       
- E a culpa certamente não recai sobre suas implicâncias e grosserias, claro.
      
- Não sou grossa. Muito menos implicante.
      
- Claro. Exatamente por isso você implicou tanto com o fato de eu não replicar sua ofensa.
            
- Não estava implicando. Só achei de uma hipocrisia sem tamanho. E vindo logo de você, que adora falar de hipócritas.
       
- Mas mulher, você vive falando que eu preciso aceitar minhas falhas e imperfeições, e buscar me tornar uma pessoa melhor. Admitir que sou uma criança não deveria ser uma parte importante disso?
           
- Nossa, Pedro, mas você chora e lamuria pra tudo, hein?
         
- Já está me desrespeitando? Eu realmente achava que era o marido aqui, mas você me trata como se eu fosse uma das suas concubinas!
              
- Bote suas calças de volta, Pedro. Pare com o drama e limpe esse suor que está escorrendo da sua testa. Tudo pra você se resume em showzinhos, teatrinhos, estou farta disso já!
                   
- Ana Cláudia, pelo amor de Jesus Cristo morto e ressurreto, pare. Pare. Pare você com esse seu jeito mesquinho e ridículo. Pare de me tratar como se fosse um problema. Porque cargas d’água você se casou comigo, se a única coisa que eu recebo por aqui é tapa na cara atrás de tapa na cara? Não tem um pingo de respeito por mim! E nem estou falando daquele respeito mítico que a mulher sábia tem pelo marido – seria esperar demais de você –, mas um respeito do tipo normal, que se tem por qualquer, qualquer ser humano digno!
     
Uns cinco minutos de silêncio.
    
- Me desculpa, Ana. – Encarava o chão – Não que o que eu tenha dito seja cem por cento errado, mas eu não deveria ter dito dessa forma.
                 
- Não, mas você está certo. Cem por cento certo, Pedro.
     
Mais uns três minutos de silêncio, e uma expressão descrente.
     
- Por quê você decidiu que eu estou certo agora, hein?
          

Alegoria da Taverna


Irlanda do Noroeste, 30 de Fevereiro de 2012,5i.
  
Nunca, em hipótese alguma, diário, se pode esperar muito de um lugar que não existe.
   
Apesar de tudo, o fato que circula de boca em boca pela Terra Média Aritmética é que, nesse pequeno burgo, de apenas quatro bilhões de habitantes, havia, no mais badalado e exposto dos centros comerciais, uma taverna. De Stormtroopers.
      
Apesar da localização privilegiada, o local era muito mal frequentado. Só gente feia e desajustada, uns metidos a gostosões e inteligentes que passavam ali cada hora de seu dia, parando ocasionalmente para comer, dormir, ou levantar alguns pesos. Havia até um bobão que vivia se casando, depois de umas doses de whisky. Não duravam muito os relacionamentos, não além dos minutos seguintes. Uma ou outra dividia a garrafa de bebida por um dia ou dois.
    
Aquele prédio mal cuidado e encardido era comandado por um ruivo alto, metido a viking, que pesava mais de 150 quilos (apesar de as más línguas garantirem que era na verdade um oriental pálido sob um encantamento de Narciso). Estava sempre atrás do balcão, à espreita. Vez ou outra sentava-se em uma mesa, trocava algumas palavras, e, só quando semeava alguma contenda, saía, e se escondia de volta sob sua máscara branca.
     
Diariamente, outros infelizes se juntavam à eles. Alguns nunca falavam palavra alguma, permanecendo sentados e solitários com suas bebidas. Outros jamais tomavam um gole do néctar envenenado que circulava pela taverna. Mas, independente de tudo, sempre havia algum bobo pra, em meio à qualquer quase silêncio, levantar seu copo e propor um brinde. O local inteiro vinha abaixo em meio aos gritos.
      
E como você bem sabe, diário, um desses bobos vem a ser essa que vos fala.
     
“Eu nem me lembro da última vez que acordei em casa!” Mais uma série de vozes, masculinas, femininas, grossas e finas, disparavam suas falas em línguas tão esdrúxulas que nem mesmo o mais viajado dos irlandeses do Noroeste entenderia.
     
Pelas janelas permanentemente semicerradas entrava pouca luz, e a iluminação interior era das mais precárias. Depois de tanto tempo no escuro, no entanto, já havíamos nos acostumado àquele ambiente nada convidativo. 
     
Pra ser sincera, eu também não me lembro da última vez que pisei fora daquele salão mal cheiroso.
Eu observava, às vezes, algumas sombras discretas nas paredes sujas de lama (fiz alguns desenhos delas até). Pareciam-se com árvores, prédios, carros e pessoas. Eram a ideia mais concreta que eu ainda tinha do que ocorria no exterior, mas não passavam disso – uma impressão. Formavam o skyline do mundo externo dentro da nossa bolha de sabão suja. Algumas vezes – algumas vezes só – eu me pegava querendo saber como estariam as coisas fora dali.
     
“FINISH HIM!”, alguém gritava. Sempre, sempre havia alguém para gritar alto o suficiente para me tirar dos meus pensamentos.
     
- Você é muito maldosa por ficar pensando nessas coisas! um gole de bebida Pura maldade o seu coração!
      
- Me respeitem, ok. Amo cada um de vocês, por mais feios que sejam. É só que, bem, o mundo não é só o que temos aqui!
     
- Claro que é! –Era bom contar com a certeza de uma (ou várias) garota por perto – E, caso um dia deixe de ser, a gente simplesmente se muda pra uma taverna maior.
     
- EI, EU OUVI ISSO, OK – De trás do balcão, Taberneiro Sensei limpava alguns copos – Eu abandonei três outras tavernas pra cuidar exclusivamente de vocês, me abandonem e sintam a fúria irlandesa!
      
Nesse exato momento, uma mesa especialmente longa discutia os últimos resultados das lutas dos encanadores italianos para conquistarem o direito de resgatarem suas princesas mensalmente. Algum novato, um garotinho, soltou uma besteira. Claro que não foi perdoado.
      
- Então você acha que eles não têm direito ao décimo terceiro resgate? É isso mesmo? – Um pirata magrelo se levantou – Você está realmente indo contra nossas ideias?
      
- B-bom, eu achei que i-isso e-era uma... Discussão. – o garotinho se encolheu na cadeira.
     
- É uma discussão, mas essa opinião não é válida. – Deu dois passos pra trás – KAMEHAMEHA! – um jato de energia saiu do magricela e atingiu o novato em cheio. O garoto voou pela sala, até atravessar e arrancar a porta da taverna.
    
...
     
Um minuto de silêncio, enquanto a luz do dia entrava por aquele enorme buraco recém-aberto. Ninguém sabia muito bem o que dizer.
    
...
     
Mais silêncio. Ninguém nem se preocupou com o garoto.
      
Senti que meus amigos me observavam, questionando-me com os olhos. Os ares se renovavam, e cheiravam à chuva, não à mofo. Minhas mãos começaram a tremer. Lord Taverneiro me observava. Era agora, agora ou nunca. Podia me arrepender, mas precisava ser corajosa. Sempre poderia voltar mais tarde. Ou não. Ou sim, claro. Eles me amam. Mas taverneiros não amam, já dizia minha mãe. Espera, por quê estou descrevendo todos esses pensamentos?
         
Apenas fechei os olhos e saí correndo.
     
Escutei alguns bobões gritando “NÃO, NÃO VÁ! FIQUE!”, mas segui em frente. E, quando caí em mim, já estava do lado de fora. Olhei pra trás. Dúzias de cabeças ruivas se amontoavam nas janelas. Fui e dei uma volta, como era bom esticar as pernas! Passeei por umas ruas, provei comida fresca, conversei com gente limpa e até tomei eu mesma um banho. Vesti roupas confortáveis e bonitas, parecia até outra pessoa.
        
Fiquei assim por algum tempo. Reencontrei-me com os amigos que havia deixado para trás. Perguntei sobre as famílias, o colégio, o que andavam fazendo de mais legal. Dormia às 23h todos os dias, para acordar pontualmente às 9h. Trocava os caminhos que fazia pelo burgo para evitar os que me conduziriam de volta àquela taverna suja, mal amada e caótica. Queria uma vida normal. Uma vida que não fosse regada à whisky e conversas interessantes sobre coisas pouco ou nada úteis nessa vida altamente fútil.
       
     
Mas você sabe, diário, que não é tão legal assim ser normal. Era óbvio que isso iria acontecer, me pergunto como não previ esse resultado desgracento.
        
      
Caminhava e me perguntava como quatro bilhões de pessoas conseguiam viver vidas tão sem emoção, sem diversão. Qual era mesmo a graça das roupas limpas? Elas se sujavam novamente, ora essa! E qual o problema em defender os direitos dos ouriços azuis? Nem era tão divertido assim ver as árvores e os prédios de perto. As sombras que eles produziam eram infinitamente mais bonitas, mesmo que as paredes fossem sujas. E aquelas pessoas bem arrumadas e belas, que tomavam banhos diários, não eram, juntas, mais legais que algum daqueles feios de cabelo mofado, individualmente.
         
Voltei correndo para a taverna. A entrada havia sido consertada. Parei em frente à sua placa – “Feios & Chatos”. Respirei fundo duas vezes e olhei pra trás mais uma vez.
       
Dane-se esse mundo exterior, eu queria voltar pra lá.
        
Suspirei e então, abri a porta.