Decidir começar aquele livro havia sido, de longe, minha
ideia mais cansativa. Seis meses e trezentas páginas depois, ainda me sentia em
um beco sem saída e percebia que, aos poucos, a bomba do branco acabaria
explodindo em minhas mãos.
A essa altura, estava presa num mesmo capítulo. O 14º, dos
17 que pretendia escrever. E realmente não sabia como encerrá-lo. Perecia nessa
dúvida havia oito noites. Minhas olheiras chegavam ao nariz, e eu poderia jurar
que durante a madrugada ouvia gritos vindos da minha cafeteira, tão
sobrecarregada e maltratada.
Cansada do processo, cansada. Cansada da minha família.
Cansada dos meus amigos. Cansada daquele maldito livro. Cansada do computador.
Desliguei tudo – nada havia a ser salvo, já que nada vinha sendo escrito.
Afoguei meu rosto na água gelada que saía da torneira. Sentia uma ressaca
literária das piores.
Vestindo um pijama e, calçando um par de sapatilhas, com um
casaco e chaves de casa presas no sutiã, saí de casa. Em plena madrugada.
Sozinha. Talvez minha mãe acordasse e entrasse em desespero. Talvez fosse
melhor voltar e pegar meu carro. Mas quem se importaria com detalhes quando sua
mente trabalha tão lentamente – já havia caminhado mais de onze quarteirões
quando consegui alcançar esse raciocínio.
Depois de muito, muito andar, acabei sentada num banco de
praça. Praça muito feia, por sinal. Mal cuidada, de dar vergonha. Dei uma
risada interna. Não havia qualquer espelho, mas com certeza meus cabelos se
pareciam com aquela grama que havia crescido demais e padecia bagunçada e
embaraçada. Observei um cão desolado passando, enquanto eu me fazia perguntas
inúteis. Ele, por sua vez, devia se perguntar o motivo de um cão ser obrigado a
viver desabrigado, em uma noite fria como aquela, sem qualquer comida, mas não
tenho certeza. Se eu soubesse ler mentes, creio que não seria muito mais feliz.
Pode ser incrível como podemos alcançar o fundo do poço
usando diferentes caminhos. Eu com certeza não imaginava a miséria psicológica
que me aguardava quando, feliz, decidi que amava metalinguagem. Uma decisão
altamente normal, se não comum. Isso, claro, em situações que envolvem pessoas
lúcidas, equilibradas e emocionalmente estáveis, cheias de uma “força
interior”. Desnecessário acrescentar que nada disso amo/sou.
Metalinguagem deveria vir com um aviso, “pensar duas vezes
antes de utilizar em autobiografia não declarada”. Porque foi esse o meu erro.
Modificar alguns nomes, personalidades e situações não
tornava aquela história que escrevia menos minha. E, talvez, a grande questão
de todas essas noites mal dormidas não seja “o que fazer dessa história?”, mas
“o que fazer da minha vida?”. Vinte anos mal vividos, à sombra da covardia.
Amando qualquer coisa que porventura me olhasse duas vezes. Reclamando de tudo
aquilo que pudesse movimentar minha existência a um sentido mais verdadeiro. De
alguma forma, eu acreditei que escrever sobre isso esclareceria o meu destino.
Só que não.
Cansei de escrever sobre ser infeliz e procurar uma
felicidade de papel maché.
Sempre acreditei que estava apenas pairando sobre o abismo,
na segurança de uma nuvem permanentemente tempestiva que nunca choveria pra
qualquer lugar. Mas foi apenas uma crença ingênua. O escuro do abismo já me
iludia os olhos havia mais tempo que eu era capaz de conceber. E a chuva já me
havia enchido e afogado, entre essas quatro paredes da alienação de mim mesma.
Coloquei as mãos nos bolsos do casaco. Minha cabeça doía, e
minha garganta apertava a ânsia de chorar. Olhei para os lados, e não havia uma
alma, sequer uma perigosa, pra me fazer companhia. Escutei ao longe a torre da
igreja badalar seis da manhã. O frio não cessava, e fazia com que eu esboçasse
caretas a cada rajada de vento que atravessava aquela praça. Suspirei. Sempre
gostei de suspirar.
Panfletos baratos de lojas de esquina se acumulavam próximos
aos meus pés. Fiz algum esforço para alcançar um, enquanto tentavam dançar ao
sabor de uma brisa. No verso de seu papel sulfite verde, um vazio. Todo um
vazio. Esperando para ser preenchido pelas palavras de um poeta ou contista
idealista, ou pelos esboços de um ilustrador de cartazes desempregado. Talvez
os rabiscos de um matemático professor mal remunerado, que sonhava ser laureado
com um Nobel.
Tudo começava por um vazio.
Esvaziei minha mente. Ou pelo menos prefiro assim pensar, já
que seria impossível, por um só segundo, cessar o movimento inconstante da
minha cabeça ainda muito cansada e dolorida. Mesmo assim, parecia que nada
poderia me tocar, naquele momento. Éramos eu e Deus apenas. Como se esvaziar-se
fosse tal qual uma elevação espiritual.
Quando abri os olhos que não havia percebido fechar, uma
senhora, muito simples, estava parada a alguns passos de distância. Carregava
uma bolsa puída na alça, e tinha olhos gentilmente cansados. O Sol já brilhava
intensamente, atravessando as árvores de copas irregulares e magrelas, parando
sobre meu olhar. A luz fê-la perceber que eu também a observava, mesmo estando
com a cabeça abaixada. Não se intimidou pela minha aparência estranha.
“Com licença, querida, você está perdida, ou fugida?”
Levantei a cabeça lentamente. Há três horas, ou três horas
depois de ter saído de casa? Não saberia por onde começar a respondê-la, não
fosse um insight que me surgiu, tão mais rápido do que me fugira uma ideia oito
noites atrás.
“Encontrada”. Um ponto de interrogação passeou por seu
rosto, antes de sorrir naturalmente e, após um leve aceno de cabeça, seguir seu
caminho. Depois dela, vários outros passaram, falaram, viveram... Acabei
cochilando lá pelas onze daquela manhã. Fui despertada às 18 horas, pela mesma
senhora; repetiu-me a pergunta. Repeti-lhe a resposta.
Já anoitecia. Ofereceu-se para acompanhar-me até em casa.
Recusei, mas depois me arrependi. Caminhei solitária por várias ruas de um
caminho mal memorizado, até finalmente chegar ao meu lar. O carro de polícia
parado do lado de fora me deu vislumbre do que teria que enfrentar quando
entrasse, mas não importava. Não agora. Finalmente terminaria aquele livro. E
em paz.
Luisa me poupe,
ResponderExcluirparabéns! Muito bom. =)
Gabriel me poupe,
Excluirmuito obrigada! =D