22 de julho de 2012

The living sculptures of Pemberley

[Texto experimental, em busca de retratar o turbilhão de sensações e sentimentos que perpassam pelo meu corpo ao escutar esta canção, "The Living Sculptures of Pemberley", parte da trilha sonora da versão cinematográfica de "Pride and Prejudice". Se desejado, leia-o acompanhado pela música.]

 

   Um som, uma nota, uma pequena clave perfumada. Um sopro, uma tecla, um toque, dois toques. Acordes se formam como pássaros que voam para o Sul.
  
  Está a começar, em silêncio, uma canção de renovo. Há nos ares o cheiro de que algo grande se sucederá. Eu posso sentir, posso sentir os meus nervos se regozijando, minha penugem se arrepiando, e meus lábios a suspirar o suspiro do deleite e da beleza que me tocam, profundamente, o espírito.
 
  Como numa brisa suave de outono, que dança por entre as árvores caducas alaranjadas, assim vou eu. A canção me carrega entre os desenhos suaves de sua natureza bondosa, antes de, num ímpeto, lançar-me ao mais sofisticado e expressivo vento, entre o assombro e o êxtase. Seus acordes gentis me tomam pelas mãos, e pulamos entre nuvens tempestivas que parecem sorrir ao nosso caminhar. Pelos altos e baixos, o Puro nos revela as palavras inexistentes da mais gloriosa musicalidade.
  
  Descanso o coração e me desfaço do desprazer, jogando-o através de uma janela voadora que tão logo aparece, já some. Sinto em minhas costas o peso invisível de plumas, que me coçam as emoções de forma tão brilhosa que meus olhos se fecham sem que minha consciência tome nota. E, fechados, iludem-nos todos com imagens e luzes tão belas quanto uma manhã árabe de Maio. Algo grande se sucederá. Algo grande está a se suceder. Algo grande me infla o peito, como um balão revestido do mais fino ouro, recheado pelo ar que me faz descansar e piscar tantas vezes que poderia entrar num coma de alegria eterna.
  
  Uma escadaria infinita e tão rebuscadamente simples, cujos degraus são como teclas de um piano cuja sinfonia é composta por anjos. E tanta luz, tanta luz cheirando a doce. Doce suave, que deixa nos olhos uma superfície limpa e um sabor latente. Minhas mãos mal se percebem a brincar com o glitter que são as lágrimas de júbilo que se deixaram escapar de meus sentidos. Maestrina de seu farfalhar, movemo-nos pela estrada de ar puro que, atrás de nós, parece executar precisos passos de bailarina. Perfeição junta à perfeição, em um beijo virginal que repousa sobre um imenso lago de cisnes. Ora mais veloz, ora menos veloz, a canção me envolve numa sequência tão macia quanto caramelo amanteigado.
  
  Mas, ah, tamanha ilusão. Permanecia presa à realidade, tentando voar para sempre com aquelas asas de penas partidas, enquanto o real peso do mundo me segurava e me acompanhava pelos pés, encoberto pelo som suave que tomava conta de todo o meu mundo. Mas não passara de um pequeno escape, e apenas por um breve momento. Um pequeno escape.
  
  Foi quando a canção se acabou.

20 de julho de 2012

Quinze pra uma da manhã.


Telefone toca no meio da madrugada. O primeiro pensamento: alguém morreu.
“Alô”
“Boa noite, senhor. Por gentileza, gostaria de falar com o senhor Leandro.”
“É ele quem está falando.”
“Ah sim. Boa noite, senhor Leandro. Eu falo em nome do seu banco, gostaríamos de comunicar-lhe um débito atrasado em seu nome.”
  
Pausa
   
“Como é? Você me liga à quinze pra uma da manhã, na terça feira, pra me falar de débitos atrasados no meu nome? Por favor, moça, me faça uma gentileza, vá dormir. Vá pra sua família, pro seu marido, pra sua namorada, quem seja que vive com você. Retornem a ligação amanhã.”
“Não senhor, por favor, não desligue.”
“Felizmente, não há nada que me impeça de fazer isso. Boa noite.”
“Por favor, senhor.”
“O que exatamente me daria razão pra isso? Faça-me um favor, querida. Siga meu conselho e saia dessa vida de telefonista da madrugada. Boa noite.”
“Moço, por favor, não desligue!”
“Olha, se esse for algum desses trotes em que você vai dizer que foi sequestrada e precisa que eu deposite dez mil reais em uma conta bancária senão você morre, sinto muito, ligou pra casa do idiota errado. Boa noite, senhorita.”
“Eu te imploro, não desligue, por favor.”
“Dê um bom motivo pra não ter feito isso ainda, e continuar te escutando”.
“...”
“Isso é um não. Passar bem, moça. Boa noite, mais uma vez.”
“Você acha que a vida faz sentido?”
“Olha, moça, se você ficou presa no bloco da Filosofia ou coisa parecida, não me interessa. Isso não é motivo pra eu continuar perdendo tempo de sono. Boa noite.”
“Então a vida não faz sentido pra você”
“Quem disse isso? Eu não disse se achava ou não que a vida fazia sentido”
“Eu te fiz uma pergunta e o senhor respondeu reclamando sobre não dormir. Se isso é tudo de importante que o senhor enxerga em uma madrugada como essa, sua vida não tem o menor sentido!”
“Olha, moça, se você está tentando me enrolar pra fazer alguma cobrança indevida, rastrear os dados do meu cartão ou clonar meus documentos, parabéns, já deve ter conseguido. Aguarde meu processo e deixe que eu descanse enquanto as coisas não acontecem. Boa noite.”
“Do que você tem medo, senhor?”
“Eu? Medo? Porque eu teria medo, se você nem se lembrou de bloquear o número do celular do qual você está ligando!”
“O senhor acha mesmo que isso é algum tipo de piada?”
“Mas não é, minha querida?”
“Você deve ser algum homem de negócios, que não gasta tempo com pessoas que pareçam menos importantes a você.”
“Sou sim, um homem de negócios. Um homem de negócios com o sono! Cansei dessa narrativa epifânica. Boa noite.”
“Se te afeta, deve ser verdade!”
“Minha querida, eu já passei da idade de ser afetado por esse tipo de coisa. Precisa muito mais pra me alcançar. Sua insistência, por exemplo, faz cócegas ao meu sono, nada mais. Como meu sono é muito importante neste momento, eu devo insistir que você o deixe em paz. Mas, depois de um bom tempo de descanso, ele com certeza irá pra segundo plano e você poderá falar com ele quando e o quanto quiser. Por ora, boa noite. Cansei desse joguinho.”
“NÃO DESLIGUE, POR FAVOR!”
  
Pausa.
  
“Moça, acho que já está bem claro que isso não é uma operação de telemarketing feita fora de hora. O que exatamente está acontecendo?”
  
Silêncio.
  
“Se não há nada mais a ser dito, boa noite. Pela milésima vez.”
  
Apesar disso, o telefone continuava ligado. Mais silêncio.
  
“Me perdoe o incômodo, moço, de verdade. Eu só queria alguém pra conversar. Encontrei seu cartão na rua, há uma semana, e desde então tenho vontade de te ligar. Finalmente criei coragem, hoje. É tarde, mas eu sabia que se não fizesse agora, acabaria desistindo depois.”
  
Silêncio.
  
“Me perdoe mesmo. Mas é que eu estava me sentindo muito solitária, sabe. Eu sempre fui uma pessoa solitária, mas chegou um momento em que o silêncio começou a falar alto demais pra que eu conseguisse aguentar.”
“Onde você encontrou meu cartão?”
“Estava perto de um banco, na Praça Central. Costumo me sentar por lá no meu horário de almoço. Tão solitário, jogado.”
  
Ele ri.
   
“O que eu disse de engraçado?”
“Sabe, aquele cartão foi parar no chão depois de uma discussão com minha ex-mulher. Não nos víamos há alguns anos. Abordei-a naquele banco. Como de costume, tudo correu errado. Entreguei-lhe meu cartão, pedi que me ligasse quando estivesse mais calma. Mas ela o jogou pro alto, e se afastou xingando.”
    
Silêncio, silêncio.
    
“Eu só queria ter uma outra chance, pra fazer com que as coisas funcionassem. Queria que fôssemos amigos, pelo menos. Isso é ridículo, depois de tê-la traído tantas vezes, e incrivelmente clichê, mas acabei percebendo que ela era a única que eu queria.”
     
Pausa.
     
“E eu nem sei por que te contei isso.”
“Acho que você precisava desabafar.”
 
Pausa.
  
“Nós dois precisávamos, na verdade.”
 
Mais uma pausa.
   
“Bom, acho que agora vou te deixar dormir, senhor Leandro. Boa noite. E obrigada.”
“Eu que agradeço. Você nem me disse seu nome.”
“Carolina.”
“Ah sim, bonito nome. Boa noite, Carolina. Muito obrigado.”
“Boa noite.”
    
O telefone permanecia ligado.
    
“Sabe, será que eu poderia te ligar depois, em um horário mais apropriado? Seu número vai ficar gravado no meu telefone, de qualquer forma.”
    
Pausa.
    
“Por favor, sim.”
“Bem, isso é ótimo! Então, é isso, né. Boa noite.”
“Boa noite”.
     
Tutututututututu...

Eu não tenho amigos.


- Eu não tenho amigos.
Felicia bufou, sentada em sua cama, encarando o guarda-roupa. Uma voz surgiu da porta.
- Ah, vira homem, menina. Claro que você tem amigos. Tem a mim!
- Katarzyna, você é uma voz do meu inconsciente que representa minha subjetividade e meu ódio de mim mesma. Além de não ser minha amiga por não ser real, você não possui uma opinião válida. Por favor, retorne ao meu córtex cerebral e me deixe em paz essa noite. – Felicia suspirou e deixou-se cair deitada sobre o travesseiro. Sua imaginação fez com que a voz se movesse em sua direção e parasse ao seu lado.
- Você tem amigos sim, sua resmungona.
- Se eu for realmente tão chata quanto você é, deveria ser fácil deduzir que seria impossível pra qualquer pessoa me aturar.
- Você tem a sua família.
- Família não conta.
- Jesus.
- Além dEle.
- Mas aí você está querendo demais, né?
- Suma, Katarzyna – Cobriu os olhos com as mãos.
- Você se prende demais a umas idealizações tão ridículas, Felicia. E acho que é por isso que você está sempre tão infeliz, reclamando de tudo.
Nenhuma resposta.
- Nada a declarar? Ótimo, vou continuar falando. “Quais idealizações?”, você poderia pensar. Bem, um bom exemplo seria essa mania de acreditar que amigos são aqueles que você vê todos os dias, quase moram na sua casa, se envolvem em altas confusões ao seu lado o tempo todo, te entendem completamente e, ainda por cima, completam suas frases. Por tal coisa, eu culpo a sessão da tarde.
Um grunhido.
- Amigos não são isso, sabe. Não apenas. Cada pessoa tem suas dificuldades na vida e todo mundo vem e vai, nem todos ficam sempre ao nosso lado. Mas existe um sentimento que permanece, que causa aquela sensação nostálgica e prazerosa de reencontrar uma pessoa querida depois de muito tempo e muita distância. Não precisa sentir no ar, a quatro mil quilômetros de distância, que você está mal, e pegar o telefone no exato momento. A confiança ao se abrir e a sinceridade ao escutar e falar são as coisas que realmente importam.
- Mas eles saíram sem me convidar. Nem a Peggy me ligou.
- E agora, por causa disso, você vai parar de falar com ela? Deixa desses tipos de drama, Felicia, pelo amor de Deus, que você já está velha demais pra isso. Você sabe muito bem que não iria, nem que eles te convidassem. E antes que você diga qualquer outra coisa – Felicia permanecia em silêncio, mas seu olhar rodeava pelo quarto – não, eles não deveriam te convidar por educação. Não depois de sete anos de convivência, né.
Silêncio.
Mais silêncio.
- Talvez você esteja certa, Katarzyna.
- Bem, na verdade eu apenas repeti tudo que sua mãe te disse hoje mais cedo. Mas como Vossa Senhoria nunca dá razão a ninguém além de si própria...
- Mentira.
- Desculpa clássica que apenas confirma minhas palavras.
- Vá incomodar outra cabeça, vá.
- Ah, cale-se. E vamos, desfaça esse bico que você fica feia pra caramba assim, e vá ligar pra Peggy.
A porta de seu quarto se abriu e sua mãe entrou.
- Conversando sozinha, Felicia?
- Mais ou menos, mãe, mais ou menos. O jantar já está pronto?
- Não, filha, ainda não. É que tem alguém te esperando no telefone.
- Quem?
- Peggy.

[Pros meus amigos queridos que sempre aturaram (e aturam!) minhas crises de carência ]